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Contos


  1) LEITERIA ASTÓRIA (1967) - Um garçom atento

   Manhã fria de outono, terça-feira, 23 de maio de 1967.

   Três ruidosos adolescentes e seus desengonçados porta-cadernos chegam e tomam a mesa, quebrando o silêncio de uma quase vazia e sonolenta Leiteria Astória.
   Se entreolham, cochicham e riem baixinho. Agindo com naturalidade, buscam não levantar suspeitas, o que é totalmente impossível. Claro que os malandros estavam “matando aula” e ainda não haviam “bolado” nenhum plano para curtir a liberdade.
   Nisso, surge atento um homem magro, alto, “borboleta” no pescoço, pano branco no antebraço, que se aproxima do grupo e, com voz grave e pausada, pergunta:
   - O que vão querer?
   Os três garotões se olham curiosos, na expectativa de que um deles fizesse o tradicional pedido: um cafezinho, que seria o “salvo conduto” para o grupo continuar ocupando a mesa, mas o que se ouviu foi:
   - Nesse momento, não queremos nada, muito obrigado! Adiantou, com voz empostada, fingindo segurança, aquele que parecia ser o mais “atirado” dos três.
   Calmamente, Barreto, o garçom, num gesto mecânico passa o pano branco sobre a mesa e, sem nenhum constrangimento, com a voz mais grave ainda, quase cavernosa, decreta:
   - Não podem ocupar a mesa sem fazer despesa!
   E os três, não contendo mais o riso, desocupam a mesa e saem às gargalhadas, à procura de novas paragens para outras molecagens.
   Aquele dia estava só começando.

                            Emanuel 19/04/2012
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 2) LEITERIA ASTÓRIA (1967) - Experiência científica

   Alguma coisa me dizia que aqueles dois, cochichando e rindo muito, na mesa do fundo, não estavam contando piadas e sim planejando alguma molecagem, o que era muito comum naquela dupla.
   Um deles se levanta e vai até ao balcão da Leiteria Astória, onde pega um açucareiro, desses grandes, de vidro, com uma tampa de rosca metálica que abre e fecha ao ser virado para baixo e o traz à mesa.
   Nada de mais. Poderia estar apenas querendo adoçar melhor o suco de laranja que bebia.
   Percebo uma agitação na mesa. Os dois riem e olham constantemente para os lados. Em seguida, o açucareiro é levado de volta e recolocado delicadamente no mesmo lugar.
   Minutos depois, um jovem casal para em frente ao balcão, pede dois cafezinhos e é prontamente atendido. O rapaz, num gesto de gentileza, pega o açucareiro e inocentemente coloca um bocado daquele açúcar na xícara de sua companheira.
   Instantaneamente, como num vulcão, a xícara expele uma lava de espuma, que insiste em não parar de jorrar, inundando o balcão e o chão, colocando atônito o casal e todos que viam e riam daquela cena.
   Voltei minha atenção para a dupla, que rindo muito, já estava na calçada. Haviam deixado o dinheiro e a gorjeta sobre a toalha.
   Sob a mesa, caída ao chão, uma embalagem de Sal de Frutas Efervescente.
   Quem poderia imaginar que aconteceria uma experiência científica naquele local...

                        Emanuel 19/04/2012
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 3)O Chafariz da Praça (1979)

   Quem, um pouco mais antigo, não se lembra do chafariz que ficava em frente ao Cinema Central na Praça João Pessoa, junto a um jardim suspenso?
   Uns diziam que aquilo era cafona e o chamavam de “Bidê”, outros apregoavam ser mais uma obra inútil da prefeitura. Havia aqueles que gostavam de “bater papo” encostado em seu redor. Mas o que realmente conta é que o chafariz chamava a nossa atenção, principalmente quando estava em funcionamento sua famosa “cascata”, uma lâmina d’água acionada por uma bomba elétrica, que vez ou outra era ligada por um funcionário.
   O tal Chafariz tinha o seu charme. Mesmo sendo um pouco barulhento por causa da bomba, não era desagradável visualmente e trazia um frescor, uma brisa, nos dias mais quentes.
   Rua Halfeld, sábado, 21 de abril de 1979, onze e pouco da manhã. Nas imediações do chafariz rolava, juntamente com a água da cascata, um animado papo entre amigos de como prestar uma homenagem de forma diferente e extraordinária a Tiradentes, lembrando que estávamos em plena ditadura militar e qualquer ação suspeita poderia acabar em prisão.
   Opiniões iam surgindo aos montes e nenhuma delas atingia a unanimidade. De repente, um dos “malucos” da turma, em tom sério, disse ter uma ótima ideia e que não poderia revela-la. Pediu que confiássemos nele, pois teríamos uma marcante e agradável surpresa.
   Mesmo desconfiados, todos concordaram. Ele afastou-se e logo voltou com um sorriso no rosto e um pacotinho na mão, onde se lia o nome de uma conhecida farmácia.
   Queríamos saber o que era aquilo. Irredutível não revelou e sem pestanejar afastou-se em direção à cascata. Abriu o pacotinho e jogou todo o conteúdo naquela agitada água que em segundos tingiu-se totalmente de azul.
   Houve um espanto geral e logo um burburinho tomou o local.
   Foi um atentado! Algum terrorista fez isso!?
   Quem tingiu a água da cascata? Polícia! Chamem a polícia!
   Não, não era nenhum atentado, apenas um inocente pacote de Violeta Genciana que aquele “maluco” havia jogado na água para, na sua imaginação, homenagear Tiradentes.
   No final, com algumas roupas respingadas de azul, todos se divertiram.
   O “maluco” não havia avaliado o grau de risco que corria e, com cara de assustado, caiu fora, apavorado, antes de ser preso como terrorista.
   Passados alguns dias, o mesmo ”maluco”, agora mais tarimbado, jogou na cascata um pacote de sabão em pó daqueles que fazem muita espuma. Foi um “auê!”
   Naquele dia, a nossa querida rua Halfeld, caminhou num mar de bolinhas de sabão.
   Tempos agitados, aqueles...

                           Emanuel 20/04/2012
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 4) O Bonde (1960...)

   Em meados dos anos 60 era comum a molecada se dependurar nos estribos dos bondes e atazanar a vida dos motorneiros e condutores.
   Na verdade, o que a maioria queria era andar de graça e economizar o dinheiro da passagem para comprar figurinhas, gibis, refrigerantes ou uma bugiganga qualquer.
   Havia aqueles que iam mais fundo nas estrepolias: colocavam vidros para moer e fazer cerol, o que, além de perigoso, era proibido.
   Paus de fósforos e bombinhas eram comuns sobre os trilhos. Provocavam estampidos como uma metralhadora e explosões com muita fumaça, causando sustos e correrias.
   A molecada também passava graxa nos trilhos, principalmente nas subidas e curvas, para fazer o bonde derrapar, colocando o motorneiro menos prático em maus lençóis.
   Uma molecagem que deu o que falar aconteceu no Alto dos Passos, num dia chuvoso, por volta das seis da tarde, na esquina da Moraes e Castro com Pedro Botti, envolvendo o nosso saudoso Bonde Passos.
   Uma turminha decidiu passear de bonde de graça e para isso decidiu levá-lo emprestado sem que o motorneiro percebesse. Combinou-se que, durante a parada no ponto final, alguém distrairia o novato e franzino cobrador enquanto o motorneiro, um sujeito baixote e gordão, fosse ao banheiro.
   E assim foi feito. Tudo corria como combinado, motorneiro e o cobrador estavam sob controle.
   Na hora que o moleque, muito assustado, foi dar a partida no bonde, sem querer, girou a chave para o lado contrário. O “bicho” saiu de ré e, fazendo um barulhão no calçamento de pedras, foi parar fora dos trilhos, já que a linha terminava naquela esquina.
   Os meninos, assustados, fugiram, correndo em todas as direções.
Resultado da brincadeira: o bonde descarrilhado permaneceu atravancando a rua até altas horas. Precisou de caminhão guincho para ser retirado do local.
   Os responsáveis pelo bonde, depois de serem achincalhados pelos colegas, foram punidos com advertência por escrito por abandono de serviço.
   Por muito tempo os motorneiros e cobradores não tiveram nenhum problema com seus trilhos, bondes e paradas do cafezinho...
   ... muitos garotos da redondeza passaram a andar a pé.

                           Emanuel 19/04/2012
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 5) O PRAZER na Comunicação

   Ainda muito jovem, recém-nascido da adolescência, só pensava em Rádio. Queria porque queria ser radialista. Sonhava ser um locutor famoso, um narrador de futebol, qualquer coisa que o permitisse comunicar-se, através das ondas do rádio, com os ouvintes.
   Naquele dia, há muito tempo, ainda de pijama, tomando o café da manhã com a família, pressentiu que algo especial estava para acontecer em sua vida. Não sabia explicar o quê. Pelos arrepios que sentia no braço interpretou que a tão sonhada oportunidade estava se aproximando.
   Na semana anterior, havia falado ao microfone por longos dois minutos e trinta e oito segundos, cronometrados e efusivamente comemorados.
   Cuidadosamente, aprontou-se com a sua melhor roupa, despediu-se com um beijo na mãezinha e saiu rumo ao centro da cidade. Mais precisamente, em direção a uma rádio onde participava, como ajudante, de um programa de variedades, muito popular na época.
   Gostava de circular pelos corredores e estúdios da emissora em busca de novidades ou de alguma locução a fazer. Neste dia, acabou encontrando.
   Já era final de tarde quando o jovem idealista cruzou, num corredor, com o dono da emissora que, provavelmente o confundindo com um funcionário, lhe entregou um pedaço de papel com anotações e, sem maiores delongas, mandou que preparasse e anunciasse imediatamente aquele falecimento.
   Contentíssimo com a missão recebida, pernas trêmulas, coração acelerado e ainda duvidando que aquilo era verdade, “voou” em direção a uma antiga Facit e mais que depressa compôs suas primeiras jornalísticas linhas.
   O pequeno texto, que parecia enorme, seria a iniciação, de fato, no tão sonhado mundo da comunicação. Seus pressentimentos estavam acontecendo, aquilo era real.
   Atrás de si, a grossa porta do estúdio foi fechada. No local, um leve cheiro de mofo não chegava a incomodar. Dentro daquele cubículo, sozinho, sentiu falta de ar, palpitação, secura na garganta. Ele pensava: é agora ou nunca.
   Putz!  Lembrou-se que não havia telefonado pra mãe avisando que falaria ao vivo, como um noticiarista. Agora era tarde, o “espetáculo” iria começar.
   O técnico de som fez o derradeiro sinal com a mão. A vinheta de fundo foi cortada.
   À sua frente acendeu-se uma placa luminosa com letras vermelhas: NO AR.
   Havia chegado a hora. Era a sua vez. Respirou fundo e atacou:
   “NOTA DE FALECIMENTO – A família de Turvalino Cíntila das Estrelas comunica com pesar o seu falecimento ocorrido em casa, nessa madrugada, e avisa a seus parentes e amigos que o féretro sairá hoje às 14 horas, da rua Agripino Agulhão n° 27, Bairro do Cebola, onde o corpo está sendo velado, para o Cemitério Municipal, com acompanhamento a pé. A família sensibilizada agradece as manifestações de carinho e dispensa o envio de coroas e flores.

   Anunciamos com PRAZER o falecimento de Turvalino Cíntila das Estrelas. Boa noite!
   Durante um bom tempo vieram gozações dos colegas, o que não o incomodava.
   A perseverança e o sonho falaram mais alto.

   Hoje, passadas mais de três décadas, Kleber Ramos, aquele jovem assustado, é um, carinhosamente respeitado Professor, Especialista em Comunicação na UFJF, onde também foi Coordenador dos Cursos de Jornalismo Diurno e Noturno, Chefe do Departamento de Televisão e Rádio por três mandatos consecutivos e Diretor de Comunicação da Instituição. Também foi responsável pela implantação e gerenciamento de programação e jornalismo das Rádios Farol FM (hoje Itatiaia) e Alvorada FM. Em Angra dos Reis, no final da década de 80, foi proprietário dos Jornais Tribuna de Angra e Tribuna Urgente e da Revista Via Brasil, além de Coordenador Geral da Rádio Angra FM.

            Emanuel 26/04/2012
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 6)  Sino da meia noite

   O garoto acabara de completar treze anos e, ainda tão jovem, achava a sua vida muito monótona. Precisava fazer alguma coisa urgentemente, inventar algo para preencher o tempo em sua última semana de férias. Era só o que pensava, a caminho da missa.
   Naquela manhã de domingo, um sol branco, de inverno, aquecia e animava a todos na Praça da Matriz.
   Pequenos grupos, em passos ligeiros, caminhavam para a Igreja. Do altar, o padre iniciava os trabalhos.
   Relaxadamente acomodado no último banco, próximo da entrada principal, o garoto observava atento um facho de luz que, atravessando por uma fresta, cortava a igreja, num rastro empoeirado, indo terminar ao pé da escada caracol.
   É isso! Sussurrou num lampejo e, prendendo o grito na garganta, completou em pensamento: a escada!
   E deduziu: Ela o levaria ao campanário, era só subir.
   Toda aquela luz, agora, brilhava em seus olhos.
   Sem chamar atenção, saiu de mansinho e foi até a sua casa do outro lado da pracinha. Pegou seu carretel de linha de “nylon” para pesca e voltou.
   Começava ali a façanha que marcaria profundamente a vida de todos do lugar.
   Terminada a missa, pacientemente esperou a saída de todos e, sem perda de tempo, aventurou-se escada acima. Do topo da torre admirou sua cidade natal e logo começou a executar o plano.
   Com a linha deu laçadas e alguns nós apertados em volta do badalo do sino. Agora, seria só fazer a outra ponta chegar a sua casa. Um verdadeiro sacrifício.
   Com uma atiradeira, conseguiu passar a linha, amarrada numa pedra, por cima dos postes e no meio das árvores. Sem incidentes, alcançou a janela do seu quarto. Era só esperar a noite chegar.
   Meia noite em ponto. O coração acelerado. Da janela via o solitário sino no alto da torre. Não pensou duas vezes, fechou um dos olhos e deu um puxão na linha. Um barulhão quebrou o silêncio. O velho sino respondeu ao atrevimento, com um estrondo assustador, bem maior que o de costume.
   Imediatamente portas e janelas rangendo se abriram. De pijamas e camisolas, pessoas atônitas perambulavam em várias direções.
   A torre da igreja se manteve incólume. Assustados, o vigário e o sacristão surgiram na porta da casa paroquial.
   O que está acontecendo? Perguntavam-se todos, naquele pesadelo coletivo.
   Não havia respostas, apenas sugestões: vento, pomba, gambá, até alma penada e terremoto, sugeriam.
   Depois de mais calmos, combinaram que “seo” Chico, antigo zelador do cemitério, ficaria de vigília até o amanhecer. Experiente na lida com assombração, ele ajudaria a decifrar o fato se acontecesse de novo. O que não ocorreu.
   Na manhã seguinte o assunto deu o que falar. Ninguém encontrava uma boa explicação. Tudo era um mistério, mas o pior ainda estava por vir.
   A partir daquela data, nas noites que se seguiram, exatamente à meia noite, o sino dava uma badalada. Somente uma única e seca badalada.
   O padre, sem encontrar explicação para o fenômeno, reuniu os fiéis e começou uma série de terços, novenas, promessas, romarias e tudo quanto é oração pra afastar aquela possível alma penada, ou seja lá o que fosse.
   Aquilo não era deste mundo, vociferava nos sermões.
   Não havia na cidade uma só pessoa que tivesse a coragem de subir naquela torre para ver de perto o tal sino “mal assombrado” que “religiosamente” atormentava a todos.
   Passaram-se semanas, mas a agonia não passava.
   Até que um dia, perto das seis da tarde, um primo da cidade grande, hóspede da família, ao entrar no quarto do garoto para espiar pela janela, encontrou caído no chão um carretel. Curioso, o apanhou e percebeu que o fio saia pela janela e desaparecia por entre as árvores da pracinha. Imaginou ser uma pipa encalhada e, pensando em ajudar, deu um puxão na linha que se soltou não trazendo nada. Desapontado, rapidamente enrolou o carretel.
   À noite, com a família reunida pro jantar, o primo contou o ocorrido e completou dizendo que, ao puxar o “nylon”, teve a impressão que havia feito o sino tocar.
   Todos riram do rapaz ao lembrarem “a maldição do sino”. Não podiam imaginar que, no mesmo momento, na igreja, o já amedrontado sacristão, também sentia que a sua primeira badalada da “Hora da Ave Maria” havia soado uma fração de segundo antes.
   Desconhecendo esta incrível coincidência, ninguém descobriu a brincadeira.
   O garoto, com um sorriso pálido, agradeceu a recuperação da linha e não disse mais uma só palavra.
   Anos depois, quase em ruínas, a igreja “mal assombrada” foi vendida e mesmo assim, alguns moradores juravam ouvir o sino tocar toda noite. Nunca descobriram o quê ou quem o tocava.
   O garoto ficou adulto, casou-se e teve um casal de filhos.
   Sempre que ouve um comentário sobre o caso, abre um sorriso e uma garrafa de vinho.
   Hoje, a campainha de sua casa é uma corda de “nylon” amarrada ao badalo de um velho sino de bronze.

                        Emanuel – 27/04/2012
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  7) Colégio São José (final década 1960)

   Na esquina da Av. Rio Branco com Dr. Romualdo havia um casarão do século XIX. A velha construção de paredes grossas em pau a pique possuía cômodos com pé direito alto, divididos por imensos portais. Os dois pavimentos eram servidos por ruidosas escadas de madeira de lei. O assoalho, num madeirame com muitas frestas, servia-nos como esconderijo das “colas”.
   Este local, em meados dos anos 60, foi palco de muitas histórias. Ali funcionava o Colégio São José dirigido pela tradicional família Viana.
   Gerações de jovens se reuniam, diariamente, naquele espaço de aprendizado em busca, também, de diversão.
   O colégio, particular, de aparência singela, abrigava todo tipo de aluno.
   Conheci alguns bastante estranhos, outros curiosos e muitos engraçados.
   Nas aulas matinais o “Soneca” geralmente dormia debruçado sobre a carteira, assim como fazia o Miltinho¹, que, ao despertar de uma cochiladinha, logo começava a cantarolar e batucar usando lápis como baqueta. Todos os colegas riam mesmo sabendo que ele havia trabalhado até de madrugada.
   O “Turista” que aparecia de vez em quando e ninguém sabia o nome. O tipo chegava a ser temido. Corria o boato que era “dedo duro” do DOPS, aparelho policial de estado na época da ditadura.
   O “Apressado” que mal entrava na sala de aula, respondia a chamada e pedia pra sair. Tinha sempre algum compromisso inadiável. Apresentava a desculpa mais estapafúrdia e saía deixando a classe inteira invejosamente rindo. Carregava, no máximo, um bloquinho de anotações. Era dos que mais colava nas provas da Professora Mary Jane. Hoje, dono de imobiliária, carrega um tablet de última geração no lugar do bloquinho.
   O “Caxião legal”, vulgo CDF², estudava adoidado, decorava a matéria e dava cola pra turma só pra pertencer ao grupo. Quando o “Caxião” errava em alguma resposta a turma caía de gozação no intervalo e sem machucar, enchia-o de “coque”³. Precisávamos muito dele. Formou-se em matemática, lecionou em vários colégios e hoje, aposentado, cuida da horta num sítio herdado da família da esposa.
   O “Caxias babaca” que não dava cola e dedurava os que colavam. Este nunca se enturmava. Eram raros, mas havia. No recreio, era comum vê-lo carregando, dependurado nas costas, um papel onde se lia: “POR FAVOR ME CHUTE!” ou “SOU BICHA!” ou “SIGAM-ME!”, o que fazia que uma fila se formasse atrás dele até que o cara descobrisse o motivo da gozação. Desse não se tem notícia.
   Os verdadeiros “bagunceiros” que soltavam bombas acionadas por cigarros, para provocar o efeito retardado da explosão, no pátio e nos banheiros, eram o terror da diretoria.
   Geralmente, após o estrondo, as aulas (PARA A NOOOOOSSA ALEGRIA) eram interrompidas e o burburinho à procura do responsável tomava a escola, mas ele nunca era encontrado.
   Não sei se naquela época já havia exame de resíduo de pólvora. Se houvesse e fosse aplicado provavelmente a Direção teria que expulsar mais da metade dos alunos, já que os artefatos passavam de mão em mão.
   Não me lembro de nenhum acidente grave.
   Mas havia um aluno que não colava espalhafatosamente, não tamborilava nem dormia sobre o tampo da carteira e não provocava explosões de bombas e sim de risos e alegria no pátio da escola. Este era o Michel, certamente, um dos alunos mais populares do ginásio.
   Quase todo dia, no final do recreio, víamos a galera agitada, pedindo que o Michel cantasse a música do “POPEYE”. O motim deixava claro que só voltaríamos para as salas se fôssemos atendidos.
   O diretor Antônio, querendo acabar logo com a confusão, incentivava para que ele atendesse ao clamor da turba.
   Michel, sorrindo e fingindo espanto pelo sucesso junto à rapaziada, do alto da escadaria, corria os olhos na multidão, raspava a garganta e mandava a cantoria.
   Era a vinheta do “Marinheiro Popeye”, cantada por ele, acompanhada por todos num inglês macarrônico e que terminava com um som imitando o apito de barco “fun... fun...”, ruído que o Michel fazia assoprando as mãos postas em concha e que parecia muito com o som original do desenho animado.
   Os colegas gritavam e aplaudiam em êxtase. Michel agradecia levantando os braços em sinal de vitória. Ao final da algazarra, todos seguiam, ainda ruidosamente, de volta para as salas de aula.
   O Diretor Antônio, com um sorriso contido, batia compassadas palmas, dizendo repetidas vezes a expressão: “Ô moço! Ô moço!”, ordenando que todos tomassem rumo. Seu dever estava cumprido. Havia recomposto artisticamente a disciplina da escola.
   Michel, feliz da vida, seguia pra sala com a turma.
   Hoje, quando raramente nos encontramos num bate papo na Halfeld, peço que repita o velho apito do marinheiro e ele, com o mesmo sorriso de garoto me atende e emocionados com a lembrança comemoramos a vida.

(¹) Miltinho é hoje o talentoso baterista do Quinteto Onze e Meia do programa do Jô.
(²) CDF é Cu de ferro
(³) Coque, cascudo ou cocada é um tapinha na cabeça feito com as juntas dos dedos.

                              Emanuel 06/06/2012   
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   8) João “Bidê” conhece o Maracanã (Golpe de 1964)

   João era um soldado “boa praça”, expressão muito usada naquela época, conforme nos conta Marcelo Resguardo.
   O cara não dava alteração e mantinha um bom relacionamento com os colegas do quartel. De hábitos simples, um pouco tímido e meio caladão.
   Naquele sombrio início de abril de 64, João cumpria sua primeira grande missão na carreira. Havia sido escalado para seguir num comboio da PM até a cidade do Rio de Janeiro, para dar apoio ao movimento militar, recentemente instalado no Brasil.
   Ali estava ele, no meio daquela multidão de policiais militares e soldados do exército. Centenas de jovens e idosos, homens e mulheres encontravam-se detidos e mal alojados em barracas dentro do Estádio do Maracanã. João nunca havia saído de Juiz de Fora e naquele momento se encontrava dentro daquele colosso, junto do povaréu com aquela zoeira toda.
   Uai, sô!!! Eta trem grande!!! Murmurava baixinho.
   Tudo aquilo era muita novidade praquele mineirinho inexperiente.
   João com seu mosquetão¹, não sabia se acatava as ordens e vigiava os detidos sob sua guarda ou se passeava os olhos naquela belezura de lugar. O gramado verdinho, as arquibancadas, a iluminação, o placar, as faixas publicitárias enchiam os olhos. Tudo era enorme, assustadora novidade.
   Absorto na contemplação, de repente sente uma fisgada perto do umbigo.
   Talvez a excitação do momento ou, quem saiba, aquelas diversas latinhas de ração de campanha e barrinhas desidratadas, que comera lambendo os beiços numa tacada só, já estivessem fazendo efeito.
   Assim que percebeu que “a coisa” na barriga era o que desconfiava ser, não perdeu tempo. Perfilou-se na frente do primeiro sargento que encontrou e pediu permissão para ir ao banheiro. Não sabia onde ficava, mas tinha certeza que naquele mundão acharia um cantinho. Precisava andar rápido já que ali tudo era grande.
   E lá foi ele com seu mosquetão se informando daqui e dali e a pressão nas tripas só aumentando. Até que viu uma placa indicando a entrada dos BANHEIROS. Sem pestanejar, acatou a informação e acelerou o passo.
   Nunca tinha visto um banheiro tão grande! Deu uma rápida espiada, pois não havia tempo a perder e logo se aninhou na primeira peça que lhe pareceu convidativa. E ali mesmo aliviou.
   Cumprida a missão e sanada a necessidade, procurou o botão da descarga, mas só havia uma torneira. Sem alternativa, ainda sentado no “vaso”, abriu-a, recebendo nos fundilhos um forte jato d’água que quase o tirou do assento. Resmungou um palavrão, secou como pode as partes atingidas, recolocou a calça e voltou caminhado em passos lentos para onde ficara a tropa.
   Junto aos colegas, ainda com a cara de assustado e a gandola² ensopada nas costas, disse que naquela cidade as coisas eram muito diferentes e que não estava gostando de algumas dessas novidades.
   Contou que a privada que havia usado, apesar de branquinha e bonita, não funcionava bem na hora de dar a descarga e por isso havia deixado a torneira um pouco aberta pra acabar de dissolver o produto.
   Todos riram muito, chegando a formar um pequeno e ruidoso tumulto, mas logo foram advertidos pelos rigorosos superiores, que não aceitavam nenhuma indisciplina.
   A partir daquele momento, João passou a ser chamado, inclusive pelos seus superiores, de João BIDÊ.
   Hoje, muito conhecido no bairro onde mora, João Bidê é um tranquilo senhor que se tornou artesão e passa os dias construindo gaiolas para curió.
Curiosamente, no banheiro da casa onde mora ele nunca instalou um bidê.

(¹) – Mosquetão é uma antiga arma de cano longo
(²) – Gandola é um agasalho militar

                            Emanuel 04/08/2012
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   9) O cheiro da arruda (História de Marcelo Resguardo)

   O local estava cheio como de costume naquela noite de sexta feira de um abafado verão.
   Uns poucos ritmistas esforçavam para que o som dos atabaques superasse o burburinho que tomava conta do local.
   Mulheres descalças, com lenço amarrado na cabeça e vestidas com saias brancas, rodopiavam no centro do terreiro ao redor de uma mesinha enfeitada com papéis coloridos, imagens e velas acesas.
   A todo o momento, alguém ruidosamente se manifestava, emitindo palavras desconexas ou sons estranhos e até mesmo se jogando ao chão, o que assustava os mais distraídos.
   Os que desenvolviam mediunidade, entusiasmados, se sentiam perto de sua primeira incorporação.
   Havia num canto do salão, na verdade, um puxadinho de chão batido coberto por telhas de zinco, um amontoado de velas acesas que tornava o ar abafado, quase irrespirável, o que só aumentava o clima emocional das pessoas.
   O chefe do grupo, Pai Totonho, entoava suas cantorias puxando o coro dos presentes, quando de repente, um senhor aparentando sessenta anos, corpo atarracado, cabelo amarelo claro e pele estranhamente rósea, vestindo um bem cortado terno de linho branco, dá alguns passos em direção ao pequeno altar e, milagrosamente sem tocá-lo, cai desajeitadamente ajoelhado ao seu lado.
   Era a primeira vez que o viam por aquelas bandas e isto provocava curiosidade nos habituais frequentadores.
   Em seguida, resmunga algo que ninguém entende e, lentamente, apoiando com as mãos, deita-se no chão.
   Por um breve momento todos ficaram paralisados. Com os olhos arregalados, ouviram o homem, num fiapo de voz, murmurar:
   - Arruda!
E após uma breve pausa para respiração, completou:
   - Soy Jesus! Soy Jesus!
   Deitado de barriga pra cima, com o terno branco agora bem avermelhado, prosseguiu:
   - Arruda!  Arruda!
   Mais que depressa, o circunspecto chefe do terreiro distribuiu arruda entre os presentes e pediu que batessem com os ramos sobre o corpo do desconhecido.
   O homem, sem entender o que estava acontecendo, seguiu repetindo:
   - Soy Jesus! Arruda!  Arruda! Soy Jesus!
   E todos seguiram freneticamente a orientação batendo com a arruda.
   Não contendo o entusiasmo, o ágil chefe do terreiro bradou:
   - Estamos diante da presença do nosso grande mentor, nosso Mestre, nosso Guia maior, Jesus!
E insistiu:
   - Tragam mais arruda, tragam mais arruda! Esfreguem e batam com ela sobre todo o corpo, temos que atender ao pedido do nosso Guia!
   Até que um grito vindo de uma senhora que acabara de chegar e observava a cena, ecoou no recinto:
   - Parem! Parem! Por favor, não toquem nesse homem! Ele é o novo vizinho que se mudou esta semana pro casarão da esquina. É argentino e seu nome é Jesus Galdino. Ele não está pedindo arruda e sim ajuda.
   - O homem tá é passando mal, cambada! Vociferou, um tanto nervosa, a senhorinha.
   Minutos depois, quando o resgate chegou já era tarde, um derradeiro infarto havia chegado antes.
   Um rápido e desajeitado velório foi realizado ali mesmo no terreiro, em seguida o corpo foi colocado numa suntuosa urna e seguiu para a capela do cemitério.
   Diversas flores ornamentavam e tentavam perfumar o lugar, mas o forte cheiro da arruda não se desgrudou mais, acompanhou a todos e ao féretro até o derradeiro final.

                              Emanuel 01/10/2012
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   10) A Revolução de 1930 - Revolução do Gambá

... Ocorreu, porém, um fato cujo registro pela "Gazeta Comercial" e o "Correio de Minas", que o fizeram em tom de mofa, irritou de tal maneira o general que, a seu mando ou espantâneamente, alguns oficiais do Exército tentaram humilhar o bravo e brilhante jornalista Heitor Guimarães, redator-chefe do primeiro daqueles órgãos, que por ele vinha tecendo cadentes comentários em tôrno da situação.
    Foi o caso de um inofensivo gambá que, pelas cinco horas da manhã de 3 de julho, desembestou pelos altos do edifício do Quartel General, saltando afinal, estrepitosamente, sobre um barracão de zinco. Assustada, a sentinela disparou seu fuzil, enquanto o general, já acordado, determinava que se pusessem em forma tôdas as tropas da guarnição, pois aquilo devia ser algum movimento subversivo, talvez o início da revolução de que tanto se falava... Por muitos dias, essa "revolução do gambá" foi objeto de comentários jacosos em tôdas as rodas da cidade.

                    Paulino de Oliveira "História de Juiz de Fora" de 1953
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6 comentários:

  1. Boa noite, lendo os comentários do Blog de Maria do Resguardo por coincidência neste sábado dia 17/05/2014 escrevendo a correspondentes e vistoriando minhas coleções encontrei calendário de 1977 da Cofercil onde a imagem é do Chafariz em frente ao Tetro Central. Em outro comentário sobre os Bondes lembrei das idas saindo do Bairro São Mateus à extinta Radio PRB3 na rua São João ia assistir o programa do Tio Teteco, também ia de Bonde após o trabalho para o Colégio São José onde hoje é o HABIBS. Por último quando estudei no Colégio São José lembrei das mancadas do 1º dia e dos mestres e colegas de classe. Parabéns pelo Blog, viajamos no tempo como faço m minas coleções.

    Waltencir Costa - Clube de Colecionadores de Juiz de Fora.

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  2. Coisa boa ver estas imagens e recordar minha terra natal. Lembro me das cocadas, brancas, deliciosas que fugindo de minha mãe eu ia comprar na pequena venda na Barao do Rio Branco!

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  3. me faz lembrar de minha infancia e adolecencia. me senti em muitas estorias destas me procurando em todas

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  4. parabens site,me orgulho ter vivido minha vida andando com minha mae dona Ebi, por juiz de fora vendendo produtoe de belesa a.v.o.n , que me proporcionou estudar no sao jose, presidente kennedy, e orgulho de ter estudado no duarte de abreu nosso lar com prof hilarina, julinha irla,e yolanda matins. como era feliz e nao sabia.

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  5. Deixo aqui os meus parabéns
    à essa excelente pagina,
    que nos traz emoções e lembranças incríveis,
    à medida que vamos lendo e vendo fotos históricas
    da nossa querida Juiz de Fora!
    Parabéns...

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  6. Euclydes Ghedim Coelho, (meu cunhado) jogou no time dele, o Leão Vermelho, e realmente ele era muito organizado e severo na disciplina. Os jogadores não precisavam levar nada para os treinos e jogos, ele fornecia todo o material que um atleta necessita-se, em um “saco de lona” com o nome de cada jogador. Desde toalha, sunga, calção, meias, tênis novos e camisas. Depois do treino ou jogo tínhamos que colocar todas as roupas e o tênis no saco de lona e entregar para o Roupeiro. No próximo jogo ou treino, cada um recebia o seu saco de lona com o nome e tudo limpo e passado, até o tênis era limpo e sempre branco. Mas precisava ser além de bom jogador, ser disciplinado, assíduo é responsável. Creio que foi o maior apoiador do Futebol de Salão que Juiz de Fora já teve.
    Euclydes Ghedin Coelho - 20 de março de 2023 às 23:10.

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